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26 de Abril de 2024
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    Combate ao racismo estrutural: uma questão de democracia

    há 4 anos

    A história do Brasil guarda a resposta para as desigualdades sociais vivenciadas no presente que relegam a maior parcela da população do país – composta por pretos e pardos – a uma situação de vulnerabilidade. Fundamental para entender essas distorções e sua persistência, o aspecto histórico engloba os quase 400 anos de escravidão, cujos reflexos ainda permeiam a estrutura social.

    Um verdadeiro abismo separa a sociedade e retrata a realidade atual em que a população preta e parda não possui os indicadores sociais equivalentes à sua proporção em comparação à população branca – nas dimensões do mercado de trabalho, distribuição de rendimento e condições de moradia, educação, violência e representação política -, conforme estudo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) sobre “Desigualdades sociais por cor ou raça”. “Esses dados confirmam o racismo estrutural e a atuação do Estado brasileiro para a completa marginalização dos negros no Brasil, e para retirar dessa parcela da população a possibilidade de usufruir de todos os benefícios do desenvolvimento”, explicou Maria Sylvia Aparecida de Oliveira, presidente da Comissão de Igualdade Racial da OAB São Paulo.

    Com a promulgação da Lei Áurea em 1888 não houve adoção de políticas públicas para garantir a inserção do negro na sociedade, acrescenta a presidente da Comissão da Verdade sobre a Escravidão Negra da Ordem paulista, Diva Gonçalves Zitto Miguel de Oliveira. “A libertação dos escravos foi uma espécie de concessão, para que não surgissem direitos de indenização decorrentes dessa forma de libertação para os senhores de escravos”, observou Diva.

    Este contexto se acirra com os incentivos aos trabalhadores europeus, com a lei de imigração de 1890, que proibia a entrada de africanos e asiáticos no Brasil. “A tentativa era buscar o branqueamento da população, que no momento da proclamação da República, era, como continua sendo, majoritariamente negra. Esses imigrantes estrangeiros vieram substituir a mão de obra escrava e vieram com uma série de ações afirmativas como forma de estímulo. Por conta disso é que falamos desta completa marginalidade. A Lei Áurea tinha um só artigo e não previa nenhum tipo de ação afirmativa para integrar esses negros nesse novo modelo de desenvolvimento, capitalista, inclusive, que estava para acontecer”, discorreu Maria Sylvia.

    A sociedade estruturada pelo racismo começa a se desenvolver no final do século XIX, com instrumentos jurídicos e teóricos que embasam a sua existência. “Essa estruturação pelo racismo é uma criação do projeto escravagista no Brasil. Esse racismo se dá a partir de não permitir que negros escravizados estudassem. A Constituição de 1824 proibia negros e leprosos de estudar e frequentar lugares de alfabetização, e a Lei do Império impedia que negros adquirissem terras. Com a Lei de Imigração e a população de imigrantes para substituir essa mão de obra escrava, o que sobra para esse negro? E tem toda uma construção, inclusive científica, de teorias que colocam o negro nesse lugar de inferioridade, como as teorias antropológicas de Cesare Lombroso, trazidas por Nina Rodrigues, em que os homens negros e mulheres negras são apontados como criminosos potenciais. É o que vemos, até hoje, na nossa segurança pública. São processos que continuam no imaginário da sociedade”, contou Maria Sylvia.

    Cenário de desigualdades

    O estudo do IBGE, divulgado em novembro de 2019, apresenta o panorama dessas distorções sociais. Apesar de a população preta ou parda ser maioria no Brasil (55,8%), esse grupo, em 2018, representou 75,2% entre os 10% com os menores rendimentos. O cenário de desigualdade se repete em outros âmbitos, caso da educação. A proporção de jovens – de 18 a 24 anos, de cor ou raça branca que frequentavam ou já haviam concluído o ensino superior (36,1%) – era quase o dobro da observada entre aqueles de cor ou raça preta ou parda (18,3%).

    É a população preta e parda a mais afetada pela violência: a taxa de homicídios foi 16,0 entre as pessoas brancas e 43,4 entre as pretas ou pardas a cada 100 mil habitantes em 2017, ou seja, uma pessoa preta ou parda tinha 2,7 vezes mais chances de ser vítima de homicídio intencional do que uma pessoa branca. Os jovens pretos ou pardos são os mais afetados pela violência, em especial os homens, cuja taxa chegou a atingir 185,0 por 100 mil habitantes.

    O cenário demanda especial atenção do Poder Público, contudo, há sub-representatividade da população preta ou parda nos espaços de decisão e no espectro político, o que contribui para o atual estado de desigualdade. Quando o recorte é feito por gênero e cor ou raça, as mulheres pretas ou pardas estão em desvantagem, tanto em comparação aos homens de mesma cor ou raça, quanto em relação às mulheres brancas. Em 2018, as mulheres pretas ou pardas constituíram 2,5% dos deputados federais e 4,8% dos deputados estaduais eleitos, e, em 2016, 5,0% dos vereadores.

    Reparação histórica

    A educação é fundamental na correção destes problemas e garantir o acesso da maior parcela da população ao ensino é dever do Estado. A Lei nº 12.711/2012 dispõe sobre o ingresso nas universidades públicas e instituições federais de ensino, reservando 50% das vagas para aqueles que estudaram em escolas públicas ou possuem renda igual ou inferior a 1,5 salário mínimo, observando a autodeclaração de pretos, pardos e indígenas, e pessoas com deficiência. Essa medida possui papel preponderante para equacionar a situação. “Inicialmente foi previsto para universidades e depois foi se expandindo para concursos públicos, mas é uma dificuldade discutir cotas em determinados setores. A magistratura, por exemplo, só foi adotar o sistema de cotas há três anos. As cotas para o ensino têm duração de dez anos e a data para acabar é em 2022. No nosso entendimento, deve ser prorrogada pois ainda não alcançou os fins que deveria. Até por que só as cotas não vão resolver. Outros elementos devem agir em conjunto para aumentar as oportunidades e ajudar na justiça social”, ressaltou Maria Sylvia.

    Diva Gonçalves explica que as cotas são medidas reparatórias temporárias para alcançar equilíbrio social. “A partir do momento que a oportunidade é a mesma para todos os membros da sociedade, não há a necessidade de implantação das cotas. Enquanto isso não acontecer, não adianta falar em meritocracia”, relatou.

    Além das cotas, outra iniciativa necessária é a efetiva implementação da Lei nº 10.639/2003, que altera as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática História e Cultura Afro-Brasileira. “A lei do ensino acontece de forma pulverizada e pelo esforço individual de professores e gestores. Há 16 anos lutamos para que seja efetivamente cumprida”, destaca Maria Sylvia. “Se não tem o empenho da sociedade civil, não existe preparação para isso. O estado não investe para que professores sejam preparados para dar essa aula, não recebem apoio e a informação necessária para aplicação e desenvolvimento dessa matéria. Não existe o animus do Estado em oficializar e implantar essa temática”, acrescentou Diva.

    Base da pirâmide

    A dimensão do racismo estrutural possui contornos marcados em todas as esferas da sociedade. Maria Sylvia e Diva Gonçalves apresentam números do Poder Judiciário, onde existem em torno de 13% de juízes negros na magistratura. O número de mulheres negras é ainda menor: “Só para ter uma ideia, em 2013, dos mais de dez mil juízes que responderam à pesquisa do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), na justiça estadual, tínhamos exatas 377 mulheres negras atuando em todo o país. Nos tribunais superiores, tínhamos três mulheres negras, que se aposentaram, e, agora, pode ser que não tenhamos nenhuma”, enfatizou Maria Sylvia.

    Diva emenda que não há informações recentes disponíveis sobre a presença das mulheres negras e homens negros na magistratura. “No Tribunal de Justiça de São Paulo temos um desembargador negro e três pardos. Juízes são 14 negros e 35 pardos. Isso se dá em todo sistema de Justiça. No Ministério Público não temos mulheres negras e apenas 3% dos membros são negros. Precisamos de um censo para uma estimativa real de quantos somos”, acentuou. Essa falta de dados concretos se repete na própria advocacia e a proposta de um censo para saber quem são os advogados e advogadas paulistas é compromisso da gestão 2019/2021.

    “As mulheres negras estão na base da pirâmide, são a minoria da minoria. No sistema de justiça o número de mulheres negras em todos os ramos é muito pequeno. Não são vistas como pertencentes aos espaços de decisão”, expõe Maria Sylvia. “O racismo estrutural, além de estruturar a sociedade nessa hierarquização de negros inferiores e brancos superiores, atua na subjetividade tanto das pessoas brancas quanto das pessoas negras. O racismo estrutural é produzido e reproduzido constantemente. Na escola, o primeiro espaço de socialização, os meninos e meninas negras não se reconhecem: não têm professores negros, não aprendem a história da África, dos escravizados, e quando veem é de forma enviesada”, pontuou. Essa falta de representatividade possui efeitos tangíveis, exemplificados no episódio da apresentadora Maria Júlia, ao receber no Jornal Hoje, da TV Globo, Maria Alice, uma menina que se reconheceu nela em vídeo e se tornou viral na Internet.

    “Quem está escrevendo a história é o colonizador. Recentemente os livros estão mudando, mas sempre aprendemos que o escravo - não era o escravizado, são coisas diferentes – era passivo, não lutava pela sua liberdade. Os negros resistiram e muito, o exemplo mais emblemático é o quilombo dos Palmares, de Zumbi, mas tem uma série de outras revoltas que não foram contadas e demonstram que os negros brigaram pela emancipação”, afirmou Maria Sylvia.

    Diva defende que é preciso refletir sobre racismo para além da tipificação penal (art. 140 do Código Penal que estipula como crime a injúria racial e a Lei 7.716/1989 que define os crimes resultantes do preconceito de raça ou cor). “Estamos aqui para mostrar que a história está para ser diferente. Será uma sociedade mais justa e melhor para todos, não só para a população negra. O Brasil tem jeito. Vai ter jeito no dia em que uma mulher negra for presidente, porque, se administramos e sustentamos essa sociedade nas costas, imagina quando estivermos no poder! Então, na verdade, é uma questão de democracia verdadeira”, finalizou.

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